Defensoria Pública como instituição essencial e permanente: um contraponto à Reforma Administrativa

1. Introdução

A Defensoria Pública, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é reconhecida pela Constituição Federal (art. 134, caput) e pela Lei Complementar nº 80/94 (art. 1º) como instrumento e expressão do regime democrático. Sua função é garantir o acesso à justiça da população desfavorecida e vulnerável, concretizando os direitos e as liberdades das pessoas carentes e necessitadas, mediante a assistência jurídica integral e gratuita. Em consequência, o efetivo acesso à justiça potencializa a democracia, reconhecendo o povo como legítimo titular dos direitos fundamentais e realizando tais direitos[1].

2. A Proposta de Emenda à Constituição n° 32/2020, conhecida como “Reforma Administrativa”

Sob a justificativa de modernizar o Estado, aproximar o serviço público da realidade do país e garantir condições financeiras e orçamentárias para a prestação de serviços públicos, o Poder Executivo apresentou a Proposta de Emenda à Constituição n° 32/2020, conhecida como “Reforma Administrativa”.

No entanto, a PEC nº 32/2020, longe de possibilitar a modernização do Estado, a eficiência do serviço público e a economia de recursos, apresenta-se como um retrocesso democrático, em grande parte de seu texto.

Dois pontos causam maiores preocupações: a inserção do princípio da subsidiariedade no caput do art. 37 da Constituição Federal e a fragilização da estabilidade no serviço público.

3. Princípio da subsidiariedade e estabilidade no serviço público

Ao incluir o princípio da subsidiariedade no rol dos princípios que regem a Administração Pública, a proposta retira o protagonismo do Estado como provedor de serviços públicos e o entrega à iniciativa privada.

Ademais, a PEC nº 32/2020 rompe com a estabilidade no serviço público, restringindo-a, de modo fragilizado, apenas aos cargos típicos de estado, os quais serão definidos por futura lei complementar.

No tocante ao princípio da subsidiariedade, é inegável sua incompatibilidade com o disposto no art. 134, caput, da Constituição Federal, que erige a Defensoria Pública como instituição permanente e essencial. Da forma como proposto pela PEC nº 32/2020, teoricamente, a função de conferir efetividade e expressão aos direitos fundamentais da população desfavorecida e vulnerável, seria, em primeiro lugar, desempenhada por particulares e, subsidiariamente, pela Defensoria Pública.

Pela vontade do legislador constituinte, a Defensoria Pública é dotada de essencialidade e permanência, sendo parte integrante e indispensável do sistema constitucional. Consequentemente, a Defensoria Pública é insuscetível de extinção ou enfraquecimento por atos ou omissões dos Poderes Estatais.

Nesse sentido, enfraquecer a Defensoria Pública, ao retirar-lhe a atuação primordial e conferir-lhe uma atuação subsidiária na prestação de assistência jurídica integral e gratuita à população desfavorecida é proposição inconcebível em um Estado Democrático de Direito, violando a ordem constitucional. Por oportuno, vale recordar lição do Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADI 2.903/PB:

“É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas -, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado”[2].

No que concerne à estabilidade no serviço público, a PEC nº 32/2020 a enfraquece e a restringe apenas aos cargos típicos de estado, cabendo à lei complementar defini-los. Neste ponto, deve ser conferido tratamento isonômico à Defensoria Pública em relação às demais carreiras típicas de estado, inserindo-a no rol dos “cargos típicos de estado” da futura lei complementar. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 3700/RN, reconheceu a impossibilidade de existência de cargos em caráter precário na Defensoria Pública e a exclusividade no desempenho de seu mister estatal: “Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira”[3].

A estabilidade no serviço público é uma garantia para a sociedade, possibilitando ao servidor público que atue sem receio de represálias ou intromissões, de forma independente em relação aos interesses privados. A flexibilização da estabilidade proposta pela PEC nº 32/2020, portanto, não se mostra como alternativa razoável ao discurso de eficiência do serviço público.

Cumpre ressaltar que, no caso da Defensoria Pública, a Constituição Federal reconhece explicitamente sua autonomia funcional, administrativa e financeira. Assim, enquanto instituição, a Defensoria Pública possui plena liberdade de atuação, estando protegida de quaisquer ingerências externas, de maneira independente e livre da influência dos Poderes Estatais.

4. Conclusão     

É importante compreender que a assistência jurídica integral e gratuita é direito fundamental previsto no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, protegido pela cláusula pétrea do inciso IV, parágrafo 4º, de seu art. 60. Por força do art. 134 da Constituição Federal, o legislador constituinte conferiu à Defensoria Pública a missão constitucional de prestar a assistência jurídica integral e gratuita às pessoas necessitadas. Sendo assim, por assegurar a concretização do direito fundamental previsto no inciso LXXIV, do art. 5º, o art. 134 é cláusula pétrea indireta, como mecanismo de salvaguarda da existência livre e perene da Defensoria Pública.

Inclusive, a intangibilidade da Defensoria Pública foi reconhecida pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, na análise da PEC nº 12/2007:

“No que concerne à análise material da proposição em comento, isto é, a sujeição de seu objeto às cláusulas constitucionais imutáveis – as denominadas cláusulas pétreas – impõe-se ressaltar que a prestação da assistência jurídica, integral e gratuita encontra-se no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais, protegida pela cláusula pétrea do inciso IV, parágrafo 4º do artigo 60 da Carta Magna. Desse modo, qualquer alteração que possa ameaçar tal direito fundamental, ainda que por Proposta de Emenda Constitucional, deve ser rejeitada, especialmente quando enfraquece a instituição Defensoria Pública, órgão estatal que efetiva o acesso à justiça no modelo atual e ampliado pela Reforma do Judiciário”.

Em síntese, quaisquer tentativas de enfraquecimento da Defensoria Pública, instituição essencial e permanente, atingem a ordem constitucional e democrática, colocando em risco o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita, direito essencial para a concretização do direito de acesso à justiça das pessoas necessitadas e vulneráveis.

5. REFERÊNCIAS

[1] Cf., a propósito, P. Häberle, Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris: 2002. p. 41.

[2] STF, Pleno. ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, j. 1º-12-2005, P, DJE de 19-9-2008.

[3] STF, Pleno. ADI 3.700, Rel. Min. Ayres Britto, j. 15-10-2008, P, DJE de 6-3-2009.

Veja também: Defensoria Pública da União como Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH)

You may also like...

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *